Meu querido futebol,
É provável que nunca tenhas reparado em mim.
Enquanto os rapazes da rua vestiam camisolas de clubes,
jogavam no clube da freguesia e discutiam equipas como se
tivessem nascido com um apito na mão, eu ficava de fora a ver.
Com vontade, curiosidade e o sonho igualzinho ao deles.
As balizas eram baloiços e uma paragem de autocarro. Os jogos
duravam até anoitecer, ou até o “Ó LUÍÍÍÍÍS! ANDA PARA CASA”.
Mesmo sem chuteiras, sem treinos, sem lugar nas equipas da
terra, eu estava lá. Sempre que deixavam.
Não houve clube, nem camisola com o meu nome. Só a vontade
de fazer parte e a teimosia de ficar ligada a ti, mesmo quando
só havia espaço para os outros.

Hoje, olho para trás com o mesmo brilho nos olhos, mas
menos silêncio. Encontrei o meu lugar no jogo, mesmo não
sendo o que sonhei em criança: de câmara na mão, nas redes
sociais, no apoio às equipas, na organização de um torneio que
me faz sentir, finalmente, lá dentro.
Este artigo não é ajuste de contas. Nem uma comparação. É
uma carta a ti, futebol.
Às portas que mantiveste fechadas.
Às outras, que com esforço, começaste a abrir.
A ti, que foste campo para muitos, mas nem sempre para
todos.
A ti, que nos deves tanto tempo, mas nos dás tantas emoções.
A ti, que já és nosso. Mas que ainda podes ser mais.
Seja a chutar bolas, a gritar das bancadas, a fotografar jogos,
relatar golos ou dirigir clubes , este campo também é nosso.
“Mas elas nem sabem jogar…”
Ainda hoje ouço: “Elas nem sabem jogar”, “Parece a terceira
distrital”, “Ninguém vê isso”, “É tão lento”. Geralmente de quem
nunca viu um jogo inteiro ,ou que nunca parou para pensar…
porquê?
Mas o futebol feminino tem história. E não é curta.
Já houve estádios cheios, há mais de 100 anos
Em 1920, um jogo feminino encheu o Goodison Park: 53.000
pessoas nas bancadas e 14.000 à porta. Eram as Dick, Kerr
Ladies, operárias de uma fábrica inglesa que começaram a
jogar para angariar fundos na Primeira Guerra. Tornaram-se um
fenómeno nacional.

O sucesso foi tão grande que assustou. Em 1921, a Football
Association proibiu o futebol feminino nos campos oficiais,
alegando que era “inadequado” para mulheres.
E a história repetiu-se: França (1919), Bélgica (1929), Brasil
(1941), Espanha sob o franquismo, Portugal no Estado Novo.
Décadas de silenciamento, em que nos empurraram para fora
dos estádios, e de volta para “o nosso lugar”.
E em Portugal?
Por cá, o silêncio durou décadas. Entre os anos 1930 e finais de
1960, não havia campeonatos femininos, clubes estruturados
nem registos oficiais. Jogava-se nas sombras, quando se
jogava.
O primeiro clube amador feminino surgiu cedo, em 1918, na
Póvoa de Varzim. Mas só em 1967, quase 50 anos depois, o
Boavista criou um departamento de futebol feminino, numa
altura em que o campeonato masculino já ia na 33.a edição.
Ainda assim, o caminho foi desigual: treinos nos horários
sobrantes, à noite, em campos já gastos; materiais
reaproveitados; pouco apoio e quase nenhuma visibilidade.
Quando a UEFA organizou o primeiro Europeu oficial, em 1984,
Portugal nem campeonato tinha. A seleção tentou a primeira
qualificação em 1982, mas só marcaria presença numa fase
final em 2017.
Nunca foi falta de qualidade, foram quilómetros de atraso.

“Ninguém vê futebol feminino!”
Dizem que ninguém vê futebol feminino,mas os números
provam o contrário.
• Em 2024, a final da Liga dos Campeões Feminina entre Barcelona
e Lyon, em Bilbao, reuniu 50.827 pessoas no Estádio San Mamés.
• O Arsenal jogou toda a época no Emirates, com uma média de
28.808 adeptos por jogo, mais do que quatro equipas da
Premier League.
• No EURO 2025, bateu-se um novo recorde: mais de 657.000
espectadores no total, média acima de 20.000 por jogo, com 29
dos 31 jogos esgotados.
• Em Portugal, em março de 2025 já havia mais de 20.000
jogadoras federadas, +12% face à época anterior; e em novembro
de 2024, o jogo da seleção contra a Chéquia no Dragão levou
40.189 pessoas, novo recorde nacional.
• A nível global, prevê-se que até 2030 o futebol feminino seja o
5º desporto mais popular do mundo, com mais de 800 milhões
de adeptos.

by Malte de Souza Otremba)
O jogo vale milhões?
Ainda não, mas…
• Em janeiro de 2024, Mayra Ramírez trocou o Levante pelo
Chelsea por €450.000, batendo o recorde da altura.
• Um ano depois, Naomi Girma tornou-se a primeira jogadora
acima do milhão: €1,04M, também para o Chelsea.
• Pelo meio, a nossa Kika Nazareth rumou ao Barcelona por cerca
de €500.000, orgulho nacional.
• Em apenas um ano, o recorde mais do que duplicou, mostrando a
velocidade com que o mercado está a evoluir.
• Desde então, já houve três novos recordes: Olivia Smith rumo ao
Arsenal (€1,16M), Lizbeth Ovalle para o Orlando Pride (€1,28M) e Grace Geyoro para as London City Lionesses (€1,65M), uma
equipa estreante na WSL.
Ainda há muito por fazer?
Tanto.
Nos quartos de final da Liga dos Campeões, Real Madrid e
Arsenal jogaram num campo lamacento, impraticável, sem
condições mínimas para o espetáculo,nem para a segurança
das jogadoras. O presidente do clube espanhol disse que só
jogariam no Santiago Bernabéu “quando ganhassem títulos”.
Para ele, o investimento só viria depois do sucesso… mesmo
sem apostar em quem o podia alcançar.
E não é só nos estádios. As mulheres têm seis vezes mais
probabilidades de sofrer roturas do ligamento cruzado anterior.
Porquê? Porque quase tudo, chuteiras, treinos, até a
Investigação,foi pensado para corpos masculinos. Só agora
se estuda o impacto do ciclo menstrual no rendimento. Só
agora se questiona o “sempre foi assim”.
Mas o futuro está a ser escrito.
Em torneios como o World Sevens, que testam novas formas de
jogo e convidam o público a descobrir o futebol feminino sob
outras regras. Está a ser escrito em campos pequenos e
grandes, em equipas de base e em superclubes. Está a ser
escrito por jornalistas, adeptas, treinadoras, investidoras,
jogadoras e por quem acredita que, para ser grande, o futebol
tem de ser de todos.

Meu querido futebol,
Ainda não estamos no topo das ligas. Ainda não temos estádios
sempre cheios, contratos milionários ou, em muitos casos, a
possibilidade de fazer de ti uma carreira sustentável. Mas,
contra tudo e contra todos, crescemos. E começamos a traçar o
nosso próprio caminho.
Não é um caminho igual ao teu, futebol masculino. Não
precisamos de ser iguais. Não queremos ser iguais. Queremos
ser válidas por nós próprias. Com um jogo mais fluido, mas nem
por isso com menos raça. Com bancadas cheias de emoção, mas
não de raiva. Com espaços seguros onde crianças e adeptos de
equipas diferentes se sentam lado a lado para ver bom futebol
,sem rancor, sem rivalidades cegas. Onde, antes dos milhões,
se joga com alma. Onde se joga porque se ama.

Ainda nos pões muitos desafios. Mas, mesmo assim, no meio
de um campo apertado, começamos a encontrar espaço ,para
correr, para estudar, para crescer. E sim, para marcar golos.
Ainda… ainda… Ainda há muito a fazer.
Mas o trabalho está a ser feito. E o futuro é brilhante.
Não te agradeço a ti, futebol. Ainda não.
Mas agradeço à Marta ,à grande Marta, à Sam Kerr, à Katie McCabe. Às Matildas e às Lionesses. À Jessica Silva, à Kika
Nazareth e a tantas outras que me devolveram a paixão por ti.
Porque o espaço está a ser conquistado. Porque o nosso lugar já
não é no banco de suplentes.
Porque este campo…
Este campo também é nosso.
Texto: Joana Pereira





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